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O Padre Imoral (prefácio)

Em dezembro de 2016, lancei o livro “O Padre Imoral: representação do Padre na literatura (séc. XIX)”, que é o resultado (dissertação) de minha pesquisa de mestrado em Literatura e Cultura, pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (Ppg LitCult) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Segue aqui o prefácio escrito pela Profa. Dra. Marlene Holzhausen para apresentar o livro aos/às leitores/as. Espero que você se sinta instigado/a à leitura integral do livro. Para adquiri-lo, entre em contato.


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O prefácio é o caminho de entrada de uma obra. Após a sinalização do título, é através dele que despertamos a atenção do leitor para os temas que ocupam espaço de relevância no interior de uma obra e estimulamos sua curiosidade em relação ao caminho trilhado pelo autor para o desenvolvimento de sua pesquisa.
Receber o convite para escrever o prefácio é, portanto, sempre um gesto de deferência e, particularmente, um presente muito especial. Sinto-me honrada em cumprir essa missão, uma vez que acompanhei a seriedade e dedicação com que essa pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura, no Instituto de Letras da UFBA.
O presente livro é uma leitura proveitosa, em especial a quem se interessa pela representação do Padre na literatura. Este segmento social, ao ficar praticamente relegado à margem da crítica, gerou uma lacuna acadêmica em relação ao modo de apropriação deste tema pelos mais diversos gêneros literários e a maneira pela qual o refletem para as sociedades portuguesa e brasileira, questão que a presente obra retoma em um estudo comparado.
No recorte temporal selecionado para este estudo comparativo, a presença do Padre como personagem central nas Literaturas Portuguesa e Brasileira oitocentista é tratada a partir de dois romances: O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de Queirós, considerado o maior romance realista português, e O Missionário (1891), de Inglês de Sousa, centrado nas teorias defendidas pelo Naturalismo brasileiro. Ambos os romances centram a atenção na figura do Padre que se apresenta com um comportamento desviante daquele apregoado pela disciplina do celibato eclesiástico. Este desvio, por conseguinte, resulta em uma depreciação do padre católico-romano, envolto pela aura do concubinado, da imoralidade. Ambos os escritores, como conclui o pesquisador, servem-se deste aspecto para desenvolver e defender as teses naturalistas, então em voga, sobretudo aquelas vinculadas com a relação do homem e seu meio, focadas na análise objetiva dos fatos. Essas teses centram suas críticas nas instituições sociais, destacando-se em especial aquela crítica dirigida à Igreja Católica Apostólica Romana, um dos principais alvos do pensamento anticlerical no período estudado.
O comportamento desviante do Padre se apresenta como um traço persistente nas literaturas de ambos os países e é através dele que os escritores dão voz aos protagonistas dos romances anticlericais do Dezenove. Esse traço desviante, que perpassa pelas duas obras estudadas, revela claramente o estereótipo que delineia a caracterização do Pe. Amaro Vieira, na obra de Eça de Queirós, e do Pe. Antônio de Morais, na obra de Inglês de Sousa. A construção e a análise comparativa dessas personagens-tipo em ambos os romances são desenvolvidas em detalhes nos três capítulos basilares da presente obra que, reforçados pela Introdução e pela Conclusão, alcançam o objetivo proposto no título. Esta estrutura clara facilita certamente para o leitor a consulta e leitura de tópicos específicos.
O primeiro capítulo traça um panorama da representação do Padre na literatura no século XIX e discute em que medida o anticlericalismo exerce influência determinante nessa caracterização, considerando-se os embates registrados entre a Igreja e as doutrinas políticas, filosóficas e científicas que perpassam o período.
A partir dessa contextualização, a representação do padre concubinado em O Crime do Padre Amaro, é discutida exaustivamente no capítulo seguinte, tomando-se os conceitos de outsider, de Norbert Elias e Jonh L. Scotson e de Howard S. Becker, e estereótipo, de Marcos E. Pereira. Estes conceitos permitem interpretar a representação do padre concubinado como uma reação social contra o desvio da disciplina do celibato clerical, que é assimilado como uma espécie de infração aos ideais de masculinidade burguesa e de moral cristã-católica.
A análise da representação do padre concubinato em O Missionário, de Inglês de Sousa, por sua vez, se dá através do conceito de entre-lugar, defendido por Silviano Santiago em sua obra-referência Uma literatura nos trópicos, que permite identificar e mapear os deslocamentos operados na caracterização de Pe. Antônio de Morais, em relação à representação do Padre no Naturalismo europeu e em toda literatura do século XIX. Ao discurso moralizante europeu acerca do concubinato, registrado na obra de Eça de Queirós, contrapõe-se a perspectiva indígena sobre as práticas amorosas na narrativa do escritor paraense. Em outras palavras, o conceito de entre-lugar possibilitou interpretar o concubinato do Padre pela ótica da moral indígena, e não mais pela ótica da masculinidade burguesa e da moral cristã-católica. Essa perspectiva nova registrada na obra do escritor brasileiro pontua uma releitura daquele discurso fechado e moralizante acerca do concubinado, que o afasta da matriz europeia do anticlericalismo e permite a inserção da cor local no seu romance. E é exatamente nesse ponto que a presente obra traz a grande contribuição para os estudos sobre Inglês de Sousa.
Cabe ainda destacar como lastro fundamental da pesquisa a bibliografia sobre as Literaturas Brasileira e Portuguesa e sobre a fortuna crítica de ambos os escritores, bem como a presença de obras que se debruçam nas leituras sobre literatura e religião. O diálogo tecido com todas essas vozes no corpo do trabalho evidencia a amplitude e seriedade da pesquisa realizada e constitui uma das grandes contribuições deste livro, que se complementa pelo cuidado na análise de ambos os romances selecionados.
Com a publicação desta obra, desejo ao leitor uma “boa viagem” na leitura do resultado final desta pesquisa que, pelo seu caráter inédito e original, é importante para o enriquecimento dos estudos literários, sobretudo num país também formado pelas contribuições lusitanas – entre elas, a religiosa -, como é o caso do Brasil.
Estou certa de que a presente obra contribui com a crítica tradicional sobre a personagem Padre, ampliando sua complexidade e, ao trazer novos elementos, retira-a do lugar comum. Mais ainda, ela também resgata o autor brasileiro, Inglês de Sousa, perante a tradição naturalista europeia, particularmente diante de seu contemporâneo, Eça de Queirós, dando-lhe o devido valor e apontando sua originalidade.

Salvador, maio de 2016

Dr. Marlene Holzhausen
Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (UFBA)


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