Teológica

A IGREJA, O ESSENCIAL E A LAICIDADE DO ESTADO

Intróito
Estamos, desde o início da pandemia, e muito mais agora, no calor das discussões sobre a concepção das atividades religiosas como um serviço essencial e a consequente justificação para a proibição ou liberação de cultos durante a pandemia. Inclusive, escrevi um post sobre o assunto, quando do início dessa querela, por ocasião da publicação do Decreto 10.292, em 25 de março de 2020. Leia-o aqui: https://cutt.ly/kcJduVQ

É preciso uma primeira palavra sobre o assunto, considerando dois pressupostos:
a) Essencial: a noção de essencial que está em jogo é técnica, quer dizer, aquilo que não pode deixar de funcionar presencialmente para o atendimento a requisitos básicos para a manutenção da vida; e não ideológico, isto é, o que é importante ou não para uma pessoa, para uma família, para uma comunidade.
b) Atividades religiosas: o que está em questão não diz respeito apenas as igrejas cristãs, mas a todo credo religioso, muito embora algumas igrejas e pessoas de fé se posicionem como se a discussão dissesse respeito apenas a si. De modo que as restrições (falaciosamente) representassem uma perseguição ao Cristianismo.

Exempla
Sou o ministro encarregado de uma pequenina comunidade da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) em Feira de Santana. A Câmara Episcopal da IEAB publicou uma primeira Carta sobre a Pandemia COVID-19 ainda em 18 de março de 2020, endossando as “medidas sanitárias de precaução e prevenção” das Secretarias de Saúde dos Estados e Municípios”; apresentando “recomendações pastorais de precaução e prevenção”, entre as quais a suspensão de todos os cultos presenciais até 04 de abril daquele ano; e indicando “ações pastorais e litúrgicas recomendadas”. De lá para cá, foram cerca de oito documentos oficiais da Câmara Episcopal para reposicionar a Igreja em tempos de COVID-19, prorrogando a suspensão das atividades presenciais e/ou estabelecendo critérios e protocolos para a retomada.

Neste tempo, quando esteve autorizada a retomada de atividades, celebramos presencialmente apenas oito vezes (todas entre outubro de 2020 e janeiro de 2021). Experimentamos, obviamente, certo grau de dispersão da comunidade de fé, o medo de negligenciarmos aspectos fundamentais de nossa crença e o enfraquecimento das já combalidas finanças da comunidade. Mas também experimentamos a nossa capacidade de reinventarmos nossa maneira de ser igreja, mesmo sem termos em mãos grandes meios de comunicação, e mais do que nunca compreendemos a importância da vida de fé para o bem-estar da pessoa humana. Numa palavra, continuamos uma comunidade de fé!

Por tudo isso, sei quais são as dificuldades que estão em jogo nessa querela em torno da concepção das atividades religiosas como serviço essencial. E sei também que é possível sermos igreja de uma forma distinta da que estamos habituados, como pede estes tempos graves de pandemia.

Compreensão teológica
Antes de começarmos a pensar os argumentos teológicos que gravitam em torno da querela em questão. Desejo ajustar a representação que temos sobre o funcionamento das igrejas na pandemia. Há igrejas que têm sido exemplares na execução de suas atividades presenciais, observando tudo quanto prescrevem os decretos de prevenção, e há igrejas que têm abusado na negação de tudo quanto é necessário para a prevenção contra a COVID-19. E há igrejas que, como a minha, nada tem feito presencialmente, adotando uma postura rigorosa para o combate à pandemia.

Sobre os argumentos teológicos, vamos lá: dar-me-ei ao trabalho de oferecer um entendimento teológico para o problema por respeito a quem, por escrúpulo religioso e verdadeiro desejo de agradar a Deus, se posiciona contra a proibição de atividades religiosas presenciais. Embora eu saiba que não é isto que está na consciência de quem iniciou essa celeuma.

Mas vamos lá. O primeiro grande argumento é justamente a afirmação de Jesus: “Os verdadeiros adoradores adorarão em espírito e verdade” (Jo 4:23) e não única e exclusivamente num lugar físico específico. Sustentar o contrário é um tremendo contrassenso e uma verdadeira heresia contra os atributos de Deus, quais sejam: onisciência, onipresença e onipotência. Não é a virtualidade que ameaçará a ação de Deus!

A objeção a isso soa tão non sense quanto à adaptação temporal de celebrações específicas, como por exemplo o horário da Missa do Galo ou da Vigília Pascal. Como se Deus estivesse sujeito ao nosso tempo e não habitasse a eternidade. Esse é o tipo de coisa que nos faria questionar: Deus é Deus ou não é?

O segundo argumento diz respeito ao próprio modo de ser da Igreja. A Eucaristia (Ceia do Senhor) é, sem sombra de dúvidas o ponto alto da vida de uma comunidade cristã, mas não é de forma alguma o seu único modo de ser. A Igreja existe também pela diaconia (serviço) e pelo testemunho da Palavra. Ela continua a existir em todo o seu serviço em prol da dignidade humana e em todo o seu anúncio do Evangelho e ensino da fé cristã. Portanto, em tempo algum da pandemia, ainda que o templo tenha sido fechado, a igreja foi paralisada, impossibilitada de continuar a ser e existir.

O real motivo
Sabemos todos que a grande questão aqui é a perda de receita da igreja. E não estou aqui fazendo juízo de valor sobre isto. É o mesmo drama de quem tem comércio. Há contas a pagar, há vidas a serem sustentadas. Nem tod@s @s pastores/as são um case de sucesso na cartilha da prosperidade – e tampouco querem sê-lo.
Mas o que pouco se tem dito sobre isso é que o pano de fundo mais fundo dessa querela é justamente o velho problema do não respeito à Laicidade do Estado. A pressão sobre o judiciário, a protestação por exceção, tem como elemento motivador a concepção de que o Estado deve estar sujeito à religião – no caso, a cristã – e por isso deve lhe atribuir excepcionalidade.
Dito isso, entenda-se que a proibição temporária a atividades religiosas presenciais, quando de decretos mais rigorosos e lockdowns, não se trata de incorrer em perseguição às igrejas e tampouco extinção de sua liberdade de culto. Mas sim do direito do Estado de organizar a vida pública em ordem do bem comum, sem concessão de privilégios fundamentados em crenças religiosas.

Que nós, religios@s, portanto, celebremos nossa fé usando de todos os meios digitais como tem sido com quase-tudo nestes tempos pandêmicos. E como nós, a bem da verdade, temos feito desde tempos impensáveis, com nosso vanguardismo!

A pergunta inevitável
A essa altura, a questão não é se o Estado pode ou não proibir as atividades religiosas presenciais. Ou se é lícito ou não que nós, enquanto religios@s, busquemos meios de garantir a manutenção de nossas igrejas. Mas sim se é ÉTICO barrarmos o Estado de tomar uma das poucas medidas efetivas de que o mundo todo dispõe para combater a pandemia, que é o distanciamento social.

Rev. Adriano Portela dos Santos
FSA, 08 abril 2021

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