Não sou filósofo e tampouco domino amplamente os conceitos com os quais lidarei aqui, quais sejam rizoma e genealogia, razão pela qual estou ciente de que o que direi está passível de críticas. E elas serão bem-vindas! Sei, contudo, que minhas ideias serão notícia ultrapassada para certo grupo de pessoas; mas sei também que, para outras, nem tanto…
O lugar do qual falo é o de um cristão com formação básica em Teologia e uma restrita iniciação em Filosofia, recebidas em perspectiva do exercício do ministério ordenado, além da formação em Letras, mais especificamente em Literatura. Ditas estas coisas, ouso-me a dizer o que direi.
O Cristianismo, como sabemos, é uma das Religiões do Livro, isto é, uma religião revelada, cujos fundamentos se encontram numa Escritura Sagrada. Desde que me iniciei no mundo dos estudos, comecei a me inquietar com a compreensão de arché (origem) utilizada pela Teologia Cristã para fundamentar a doutrina das comunidades eclesiais. Vê-se no princípio o modelo para as doutrinas, o que significa dizer, que a origem contém a essência (de caráter metafísico) dos postulados cristãos. É preciso dizer que estou pensando aqui sobretudo na Moral Cristã, embora não apenas.
A Genealogia de Foucault
Desejo começar a problematizar essa concepção a partir do conceito de genealogia de Foucault, que pressupõe não uma origem, mas várias origens. Desse modo, para o filósofo francês, genealogia não seria a busca por uma origem metafísica (Ursprung), que é a “essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo” (FOUCAULT, 1995 p. 17). Por trás dessa busca da identidade primeira que se encontraria na origem (metafísica) de cada coisa, está a ideia de que a essência, a perfeição e a verdade se encontram nessa identidade primeira.
A origem buscada pela genealogia de Foucault é a aquela que é formada por contribuições diversas e sutis para a identidade das coisas (Herkunft). O exemplo melhor desse tipo de origem é a própria pessoa humana que, embora sendo uma, é constituída por uma série de contribuições étnico-sociais. Esse sentido de origem (Herkunft) se coliga a outro sentido da palavra, que pode ser traduzido como emergência (Entstehung), o ponto de surgimento. Esse sentido evidencia que as coisas nem sempre foram como são e como pretende visão metafísica sobre a origem das coisas. Ele expõe “o jogo causal de dominações”, “os diversos sistemas de submissões”, que impõe o estado atual das coisas como sendo advindo desde o primeiro momento.
O conceito de Foucault ajuda a Teologia a sair de sua inocência (ou perversidade), de pensar que o modelo legitimado das coisas está dado desde a origem e, portanto, tudo o que fuja a essa origem não tem status de legitimidade. Não há origem, há origens, diz-nos Focault; e elas são válidas e legítimas, dir-nos-á Deleuze e Guattari.
Os Rizomas de Deleuze e Guattari
Deleuze e Guattari tomaram da botânica a ideia de rizoma, que é um tipo de raiz com crescimento multiforme e indefinido. Aplicando essa realidade botânica à Filosofia, os dois filósofos definiram o rizoma como um “sistema aberto”, que é “quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências”. (Deleuze em entrevista publicada no jornal Liberácion, em 23 out 1980). Traduzindo as palavras de Deleuze, significa que os conceitos não são prontos, acabados, mas estão sempre sujeitos a alterações, revelam novas nuances.
Nas palavras do próprio Deleuze,
um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e… e… e…” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. (DELEUZE, 1995)
Portanto, uma vez gerados, os conceitos não são domináveis. Eles são múltiplos, dilatam-se, explodem em todas as direções, fogem à unidade. Isso é inteiramente legítimo, porquanto são possibilidades latentes nos próprios conceitos –Aristóteles chamaria de potência. Não se trata de algo estranho a eles, mas eles mesmos desdobrados, estendidos.
Consequências Teológicas
Trazendo o pensamento de Michael Foucault e Gilles Deleuze para o campo teológico, somos conduzidos a um “novo” método, chamado “rizomático”. Pensemos a variedade eclesiológica do Cristianismo, a Moral Sexual, o Celibato Eclesiástico ou outro tema que escolhermos.
Trata-se de não mais olhar para trás, rejeitando toda novidade do que está no agora como ilegítimo; não mais olhar o dito ortodoxo do agora como se fosse prescrição inalterável do ontem; diria mais: não ousar comparar o agora com o antes, porque o agora, no que aparenta fugir à ortodoxia, tem sua originalidade, não é mera deformação do original (como chamaria a atenção o próprio Deleuze em “Platão e o Simulacro”), mas sua potência atualizada. Então, aqui não caberá mais verdade ou falsidade. É isto ou, então, declarar: Deus está morto! Deus mesmo é um rizoma: é raiz e origina imprevisivelmente!
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. Microfísica do Poder. FOUCAULT, Michel. Trad.: Roberto Machado. 11ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1995.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. pp. 259-271.